SOUTO NO MUNDO

Sérgio Souto
Estrategista Criativo

Invadi meu próprio deserto












Aquele toque fez desmoronar um muro fajuto, construído ao longo de quase trinta anos de pura inexperiência.

De dentro do ônibus, eu a vi ajeitar o lenço que cobria seus cabelos e quase todo o rosto. Muito bonito, por sinal. Desconhecia essa independência que a beleza pratica no Oriente Médio. Tomei nota: beleza e relatividade de mãos dadas a partir de agora.

De onde eu estava uma pequena porção de bochechas e testa ficaram à mostra. O seu carro ao lado do meu ônibus no semáforo. Ela não se viu observada ou fez cena para os olhos de um stalker ocidental e acidental. Ela subiu o espelho do quebra-sol, pegou a mão direita do marido e a colocou gentilmente sobre a perna. Ela o tocou. Fez carinho. Intencionalmente. Apenas eu e minha até então fraca percepção do mundo furtamos esse momento alheio.

Foi ali que percebi: uma viagem destrói o que você tem de pior para dar lugar a uma semente que cresce a cada novo carimbo no passaporte, bilhete de ônibus, pedalada. Qualquer mudança mínima das suas coordenadas originais.

Se eu romantizei uma cena banal? Com vênus em câncer é bem possível que sim. No entanto, o romance, pra mim, não era uma opção ali naquelas coordenadas que passariam longe de qualquer roteiro turístico dos meus sonhos, não fosse a bolsa para uma semana de workshops em Doha, no Qatar.

E o sexismo? A religião e toda a repressão? Tudo aquilo de ruim que pregam por aquelas bandas de lá? Estão lá, como estão aqui também. Camuflados nos mais diferentes cantos. Não quero negá-los ou discuti-los com óculos de Pollyanna.

Agora o assunto não é político (ou é). Não é falar do que está fora. É o dentro. De mim. E de você também. Viajar para dentro da gente mesmo só é possível com a permissão do acaso. Acredito que isso possa, um dia, mudar o fora. O todo.

Passei, intencionalmente, a treinar meu olhar para dentro. Um gesto de afeto sincero para comigo mesmo. Ninguém, além de uma versão desatualizada de mim, para me observar e deixar cultivar o novo. Porque você bem deve saber, a vida no deserto não é fácil. A não ser que alguém lhe oferte sementes como aquela afetuosa mulher de lenço do carro ao lado.

05/11/2020








︎ Sérgio Souto

O amor não está. Deixe um recado.

20/12/2020

︎ Sérgio Souto
O amor, hoje, não mostra um semblante convidativo. Ele passou por caminhos inesperados. Irritado, invadiu um cenário imaginário e destruiu tudo. Sem dó e a tempo de não se emoldurar o que estava por vir. Aquilo não o representava. E eu sei que é só por hoje. Hora ou outra ele abre um sorriso, as portas, e deixa entrar. Vai demorar, ele avisa.

Hoje não é assim. O telefone toca. Ele não atende.

Como alguém que acumula objetos, eu acumulei percepções sobre o amor. Ele aprendia a ser e eu a sentir. Eu tentei sofisticá-lo por muitos anos, e a única coisa que ele queria era assumir-se clichê. Eram percepções certas para aquele tempo, no entanto, ultrapassadas para o hoje. Agora observamos. Ficou para mim o trabalho sujo de limpar tudo. Jogar fora o que perdeu sentido, nunca o valor. Coisa das mais difíceis essa de desapegar do conhecido.

A sensação é de se estar andando para frente, mas sem vislumbrar detalhes do caminho. Vamos um ao lado do outro, sérios. Longe de qualquer epifania, afinal, não sabemos por onde ou o que vem pela frente. E às vezes um se cansa mais que o outro. Paramos. Pra que apressar se não sabe aonde chegar, cantarolamos juntos a música no shuffle.

Ainda caminhamos. Não tenho um final. Ainda é parte.

O telefone toca. Amor, atenda. É o Acir.

***
texto publicado na edição final do
“desnamorados - um livro colaborativo sobre o amor“.

︎